Meu pai
chegou do trabalho na lavoura, tirou do ombro o bornal com a garrafa de café
vazia e sentou-se num degrau da escada da porta da cozinha.
Pediu-me que fosse buscar o rolo de fumo de corda, que ia, enquanto esperava o
jantar, preparar os cigarros para a noite e o dia seguinte.
Eu trouxe e ele, ao desembrulhar o fumo, deu com a cara do Pelé sorrindo no
jornal do embrulho. Enquanto desamassava o papel para ver melhor, disse-me:
— Este sim, teve sorte. Lê aí pra mim, filha. Fala devagar, senão eu não decifro
direito.
Peguei o jornal e comecei a ler o comentário que contava façanhas esportivas e
dava algumas informações sobre a vida fantástica do jogador. Muitas palavras eu
não sabia do significado, mas adivinhava quando olhava no rosto do meu pai e
ele soltava ameaços de risos, sem tirar o olho da mão trêmula que picava o
fumo.
Quando terminei a leitura, ele disse:
— Benzadeus. Você viu só, minha filha? Era assim como nós. O pai dele é que
deve não se caber de orgulho. Ver um filho assim, acho que a gente até esquece
das durezas da vida.
Deu um suspiro comprido e acrescentou:
— Se a gente pelo menos pudesse estudar os filhos...
Senti uma pena tão grande do meu velho, que nem pensei para perguntar:
— Pai, o que que mulher pode estudar?
— Pode ser costureira, professora... — Deu um risinho forçado e quis encerrar o
assunto.
— Deixemos de sonho.
— Vou ser professora — falei num sopro.
Meu pai olhou-me, como se tivesse ouvido blasfêmia.
— Ah! Se desse certo... Nem que fosse pra mim morrer no cabo da enxada. Olhou-me
com ar
de consolo. — Bem que inteligência não te falta.
— É, pai. Eu vou ser professora.
In: Geni Guimarães. Leite do peito: contos. São Paulo: Fundação Nestlé de Cultura, 1988, pp. 73-79.
Quem é Geni Guimarães: É professora, poeta e escritora. Nasceu no município de São Manuel (SP), em 8 de setembro de 1947. Iniciou a carreira literária escrevendo para jornais no interior paulista, onde envolveu-se com questões socioculturais do campo e reflexão em torno da literatura negra. Escreveu vários livros: Terceiro filho, Balé das emoções, A dona das folhas, A cor da ternura, Leite do peito, O rádio Gabriel (infantil), Aquilo que a mãe não quer (infantil). Também publicou na série “Cadernos Negros” e participou de algumas antologias.